Era um daqueles aeroportos pequenos e manhosos, para voos domésticos e lowcost. Lá fora, encontravam-se estacionados em fila uns autocarros azuis, de portas abertas, a chamar os recém-chegados. A temperatura de 33 graus, os motoristas a conversarem em rodinha com as suas camisas manchadas de suor e os bancos de veludo dos autocarros exerciam uma força de atracção oposta àquela direcção. Mas Veneza esperava-nos e a ATVO, assim se chamava a companhia de autocarros, era a nossa melhor opção.
Para não exigir demasiado dos seus funcionários em tempos tão quentes, a ATVO decidiu substituir a simpatia dos mesmos por um panfleto de quarenta e algumas páginas, daqueles que ninguém lê, tentando apostar numa boa comunicação empresarial. No panfleto azul, explicavam uma série de procedimentos da empresa, regras de conduta, bem como direitos e deveres do cliente. Ora nas primeiras páginas, decidiram clarificar, para clientes eventualmente mais leigos, o “conceito de viagem”:
Il viaggio deve essere intenso nella sua accezione più ampia. Esso, infatti, inizia nel momento in cui sorge l’esigenza di spostarsi e termina quando si giunge alla destinazione finale – assieme con i beni che accompgnano il viaggiatore.
A viagem deve ser intensa na sua acepção mais ampla. Esta inicia-se no momento em que surge a exigência de deslocamento e termina quando se chega ao destino final, juntamente com os bens que o viajante transporta.
“Ora, palavras sábias!”, pensamos. Esta explicação originou todo o género de piadas para os dias seguintes. Em alturas em que os pés já latejavam com dores e em que o calor nos consumia, reflectir sobre o “conceito de viagem” servia de trunfo para fazer nascer gargalhadas de onde antes já só saiam suspiros de desespero pela temperatura desregulada ao nosso corpo. E começava sempre assim... “Ora vamos lá reflectir sobre o conceito de viagem. Quando começa? Quando acaba?”
Acabaram rápido os dois dias passados em Veneza, debaixo do sol abrasador, ao som de concertinas e vozes masculinas que cantavam músicas populares italianas, entoando ao longo dos canais, onde a beleza dos edifícios se duplicava nos reflexos da água. Como sempre acabam todas as viagens.
Ao final do segundo dia deixamos a Terra do Nunca. No avião de regresso, ela que me acompanha sempre, disse-me “Não quero voltar para Portugal...”. “Eu também não...”, respondi. Mas também não queria voltar para Roma. Eu queria ficar na Terra do Nunca, que não é Veneza, nem outra cidade qualquer, não é um país, nem um qualquer ponto geográfico. É...um estado de espírito.
Há muito que a viagem em Roma se acabou. Porque a viagem acaba-se quando os sentidos deixam de funcionar correctamente. O olfacto entope-se, os olhos já não enxergam as tonalidades entre as várias cores, os ouvidos escutam só ruídos de carros e motorizadas...e disparates. Os disparates passam a perturbar-nos terrivelmente. Os dedos, esses, enferrujam porque já não recebem estímulos.
A viagem acaba quando se sente saudades, quando nos dá vontade de dizer o quanto gostamos das pessoas que gostamos. É então que surge a “exigência de deslocar-nos”, porque os dedos suplicam por algo novo, por alimento para a alma, por algo “intenso, na sua acepção mais ampla”.
Afinal...eram mesmo sábias palavras...
terça-feira, 26 de maio de 2009
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"Porque a viagem acaba-se quando os sentidos deixam de funcionar correctamente."
ResponderEliminarEsta sim, é a melhor definiçao que alguma vez encontrei... Quando se instala a rotina, quando tomamos as coisas por garantidas, quando pensamos que temos 'tempo'.
"...They made a statue of us
And it put it on a mountain top
Now tourists come and stare at us
Blow bubbles with their gum
Take photographs for fun, for fun
We're living in a den of thieves
Rummaging for answers in the pages
Were living in a den of thieves
And it's contagious
And it's contagious..."
Inês :)
ResponderEliminarsó para mandar um beijinho cheio de sol português e dizer que tenho saudades de te ver em JCC. Fazes-me falta :)
Mariana Ascenção*