Pode ser uma pessoa ou um sítio. Ou um livro, um filme. Uma teoria de Adorno ou de Nietzsche. Não interessa muito a forma em que nos surge. É sempre algo que carrega uma verdade que nunca nos tinha sido contada. Quando enfim nos é revelada, sentimo-nos tal qual a personagem de Platão que se libertou das correntes que o limitavam às sombras. Mais cedo ou mais tarde acabamos por nos aprisionar de novo, mas fica a nostalgia daqueles instantes em que, ainda ofuscados, nos habituávamos à luz.
Passou três meses e recordo essas “verdades” que me surgiram de todas as formas. Não soube como terminar esse período de “iluminação”. E ainda não sei. Talvez não queira terminar. E, por isso, porque não sei ou não quero, passo a palavra para que terminem por mim. Adeus Roma.
“Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo.”
José Saramago, “De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz”
sábado, 10 de outubro de 2009
quinta-feira, 11 de junho de 2009
Verona ao som de Morricone
Concerto de Ennio Morricone na Arena de Verona
C'era una volta il West
Il Buono, il Brutto, il Cattivo
C'era una volta il West
Il Buono, il Brutto, il Cattivo
O meu Palermo Shooting
Viver a Sicília
Demorei a conseguir encaixar o cinto de segurança. O senhor lançava-me um olhar admirado, ignorando com grande naturalidade a estrada à sua frente. Pude ler na sua expressão que perguntava a si mesmo “ma che cazzo fai?”. Há muito que os cintos daquele carro não deviam ser utilizados. Na altura, pensei que a minha dificuldade se devesse à euforia que me fazia tremer por todo o lado. Apanhar boleia de um siciliano de gema seria uma experiência para relembrar, contar e recontar, eu sabia-o. E, assim que pude olhar à minha volta, confirmei-o.
Era um automóvel que nunca, desde a sua concepção, havia sido limpo. Aparentava mesmo ter sido sujo propositadamente, porque involuntariamente ninguém conseguiria tal. Misturava-se terra com pó, latas, folhas e revistas velhas.
Não era também propriamente um automóvel, mas antes o que restava dele. Retrovisores, nem vê-los. O vidro da frente ameaçava cair a qualquer momento, em virtude de todas as rachadelas que o compunham. Mais quatro pessoas dentro do automóvel parecia uma séria ameaça à sua frágil estrutura.
Ao meu lado, no lugar do condutor, estava o siciliano com um aspecto igualmente sujo, barba por fazer, cotovelo apoiado na porta, e barriga volumosa, apertada entre o banco e o volante. Realmente ele não precisava de cinto de segurança. “Perfeito!”, pensei feliz, com um grande sorriso incontrolável, por não ter defraudado as minhas expectativas de como seria o senhor que pararia para nos dar boleia.
Eu queria saber tudo sobre o senhor. O que é que ele fazia, de onde vinha, onde morava, se era de esquerda ou de direita, o que é que ele achava do Berlusconi. Mas a pergunta que eu queria mesmo mesmo fazer era se ele conhecia mafiosos. Talvez me saísse a sorte grande e ele fosse um deles!
Ele era de conversa fácil, como todos os sicilianos e, rapidamente, tomou as rédeas ao diálogo. A viagem prosseguiu aos s’s por entre buzinadelas, insultos dados e recebidos e travagens bruscas que nos faziam temer pela nossa vida. Logo acalmei a euforia e esqueci a enxurrada de perguntas, fixando os olhos na estrada, agarrada ao banco.
Ele percebia o medo que exalava de nós e de vez em quando faziam-se silêncios pesados que logo quebrava dizendo “ Não se preocupem! Eu é que estava distraído com a conversa! Peço desculpa por vos ter assustado!”. Era tão simpático, o senhor que quase nos matou... E prosseguia a conversa. Explicou-nos que só não ia passear connosco porque tinha acabado de sair do trabalho e a esposa estava à espera para jantar.
Quando terminamos o percurso, estávamos os cinco vivos, dos quais quatro banhados em suor e pálidos de medo. Apercebi-me que não perguntei nada do que queria saber e repreendi-me a mim mesma. Relembrei então o que senhor tinha contado e que na altura não tive capacidade para apreender, porque a energia despendida a agarrar o banco não podia de forma alguma ser veiculada para o aparelho auditivo. O senhor, segundo nos disse, nunca havia saído de Itália mas também não queria. Era muito feliz assim. Para que havia de sair? Além disso, todos vinham ali ter à ilha: ingleses, espanhóis, franceses, alemães, portugueses...
Com as pernas ainda a tremer, enquanto ouvia os gritos e música de uma manifestação comunista e, ao mesmo tempo, se assomava à minha frente a Piazza del Duomo de Catânia, partilhei da sensação do senhor: Itália chega-nos para uma vida inteira.
Catânia
Templi di Agrigento
Isola Bela
Taormina
Etna
Siracusa
Era um automóvel que nunca, desde a sua concepção, havia sido limpo. Aparentava mesmo ter sido sujo propositadamente, porque involuntariamente ninguém conseguiria tal. Misturava-se terra com pó, latas, folhas e revistas velhas.
Não era também propriamente um automóvel, mas antes o que restava dele. Retrovisores, nem vê-los. O vidro da frente ameaçava cair a qualquer momento, em virtude de todas as rachadelas que o compunham. Mais quatro pessoas dentro do automóvel parecia uma séria ameaça à sua frágil estrutura.
Ao meu lado, no lugar do condutor, estava o siciliano com um aspecto igualmente sujo, barba por fazer, cotovelo apoiado na porta, e barriga volumosa, apertada entre o banco e o volante. Realmente ele não precisava de cinto de segurança. “Perfeito!”, pensei feliz, com um grande sorriso incontrolável, por não ter defraudado as minhas expectativas de como seria o senhor que pararia para nos dar boleia.
Eu queria saber tudo sobre o senhor. O que é que ele fazia, de onde vinha, onde morava, se era de esquerda ou de direita, o que é que ele achava do Berlusconi. Mas a pergunta que eu queria mesmo mesmo fazer era se ele conhecia mafiosos. Talvez me saísse a sorte grande e ele fosse um deles!
Ele era de conversa fácil, como todos os sicilianos e, rapidamente, tomou as rédeas ao diálogo. A viagem prosseguiu aos s’s por entre buzinadelas, insultos dados e recebidos e travagens bruscas que nos faziam temer pela nossa vida. Logo acalmei a euforia e esqueci a enxurrada de perguntas, fixando os olhos na estrada, agarrada ao banco.
Ele percebia o medo que exalava de nós e de vez em quando faziam-se silêncios pesados que logo quebrava dizendo “ Não se preocupem! Eu é que estava distraído com a conversa! Peço desculpa por vos ter assustado!”. Era tão simpático, o senhor que quase nos matou... E prosseguia a conversa. Explicou-nos que só não ia passear connosco porque tinha acabado de sair do trabalho e a esposa estava à espera para jantar.
Quando terminamos o percurso, estávamos os cinco vivos, dos quais quatro banhados em suor e pálidos de medo. Apercebi-me que não perguntei nada do que queria saber e repreendi-me a mim mesma. Relembrei então o que senhor tinha contado e que na altura não tive capacidade para apreender, porque a energia despendida a agarrar o banco não podia de forma alguma ser veiculada para o aparelho auditivo. O senhor, segundo nos disse, nunca havia saído de Itália mas também não queria. Era muito feliz assim. Para que havia de sair? Além disso, todos vinham ali ter à ilha: ingleses, espanhóis, franceses, alemães, portugueses...
Com as pernas ainda a tremer, enquanto ouvia os gritos e música de uma manifestação comunista e, ao mesmo tempo, se assomava à minha frente a Piazza del Duomo de Catânia, partilhei da sensação do senhor: Itália chega-nos para uma vida inteira.
Catânia
Templi di Agrigento
Isola Bela
Taormina
Etna
Siracusa
terça-feira, 26 de maio de 2009
As Memórias do Gueto Hebraico de Veneza
A cidade de Veneza relembra os judeus venezianos que foram deportados para os campos de concentração nazis a 5 de Dezembro de 1943 e a 17 de Agosto de 1944.
Uomini, donne e fanciulli gregge per il crematório
Avanzati verso l’orrore Sotto la frusta del bóia
Il vostro triste olocausto é scolpito nella storia
E nulla cancellerà i vostri morti dalla nostra memoria
Perchè le nostre memorie sono la vostra única tomba.
Men, Women, Children masses for the gas chambres
Advancing toward horror beneath the whip of the executioner
Your sad holocaust is engraved in history
And nothing shall purge your deaths from our memory
For our memories are your only grave.
André Tronc, Forças Combatentes Francesas
Uomini, donne e fanciulli gregge per il crematório
Avanzati verso l’orrore Sotto la frusta del bóia
Il vostro triste olocausto é scolpito nella storia
E nulla cancellerà i vostri morti dalla nostra memoria
Perchè le nostre memorie sono la vostra única tomba.
Men, Women, Children masses for the gas chambres
Advancing toward horror beneath the whip of the executioner
Your sad holocaust is engraved in history
And nothing shall purge your deaths from our memory
For our memories are your only grave.
André Tronc, Forças Combatentes Francesas
Veneza, Porto de Chegada...e de Partida
Era um daqueles aeroportos pequenos e manhosos, para voos domésticos e lowcost. Lá fora, encontravam-se estacionados em fila uns autocarros azuis, de portas abertas, a chamar os recém-chegados. A temperatura de 33 graus, os motoristas a conversarem em rodinha com as suas camisas manchadas de suor e os bancos de veludo dos autocarros exerciam uma força de atracção oposta àquela direcção. Mas Veneza esperava-nos e a ATVO, assim se chamava a companhia de autocarros, era a nossa melhor opção.
Para não exigir demasiado dos seus funcionários em tempos tão quentes, a ATVO decidiu substituir a simpatia dos mesmos por um panfleto de quarenta e algumas páginas, daqueles que ninguém lê, tentando apostar numa boa comunicação empresarial. No panfleto azul, explicavam uma série de procedimentos da empresa, regras de conduta, bem como direitos e deveres do cliente. Ora nas primeiras páginas, decidiram clarificar, para clientes eventualmente mais leigos, o “conceito de viagem”:
Il viaggio deve essere intenso nella sua accezione più ampia. Esso, infatti, inizia nel momento in cui sorge l’esigenza di spostarsi e termina quando si giunge alla destinazione finale – assieme con i beni che accompgnano il viaggiatore.
A viagem deve ser intensa na sua acepção mais ampla. Esta inicia-se no momento em que surge a exigência de deslocamento e termina quando se chega ao destino final, juntamente com os bens que o viajante transporta.
“Ora, palavras sábias!”, pensamos. Esta explicação originou todo o género de piadas para os dias seguintes. Em alturas em que os pés já latejavam com dores e em que o calor nos consumia, reflectir sobre o “conceito de viagem” servia de trunfo para fazer nascer gargalhadas de onde antes já só saiam suspiros de desespero pela temperatura desregulada ao nosso corpo. E começava sempre assim... “Ora vamos lá reflectir sobre o conceito de viagem. Quando começa? Quando acaba?”
Acabaram rápido os dois dias passados em Veneza, debaixo do sol abrasador, ao som de concertinas e vozes masculinas que cantavam músicas populares italianas, entoando ao longo dos canais, onde a beleza dos edifícios se duplicava nos reflexos da água. Como sempre acabam todas as viagens.
Ao final do segundo dia deixamos a Terra do Nunca. No avião de regresso, ela que me acompanha sempre, disse-me “Não quero voltar para Portugal...”. “Eu também não...”, respondi. Mas também não queria voltar para Roma. Eu queria ficar na Terra do Nunca, que não é Veneza, nem outra cidade qualquer, não é um país, nem um qualquer ponto geográfico. É...um estado de espírito.
Há muito que a viagem em Roma se acabou. Porque a viagem acaba-se quando os sentidos deixam de funcionar correctamente. O olfacto entope-se, os olhos já não enxergam as tonalidades entre as várias cores, os ouvidos escutam só ruídos de carros e motorizadas...e disparates. Os disparates passam a perturbar-nos terrivelmente. Os dedos, esses, enferrujam porque já não recebem estímulos.
A viagem acaba quando se sente saudades, quando nos dá vontade de dizer o quanto gostamos das pessoas que gostamos. É então que surge a “exigência de deslocar-nos”, porque os dedos suplicam por algo novo, por alimento para a alma, por algo “intenso, na sua acepção mais ampla”.
Afinal...eram mesmo sábias palavras...
Para não exigir demasiado dos seus funcionários em tempos tão quentes, a ATVO decidiu substituir a simpatia dos mesmos por um panfleto de quarenta e algumas páginas, daqueles que ninguém lê, tentando apostar numa boa comunicação empresarial. No panfleto azul, explicavam uma série de procedimentos da empresa, regras de conduta, bem como direitos e deveres do cliente. Ora nas primeiras páginas, decidiram clarificar, para clientes eventualmente mais leigos, o “conceito de viagem”:
Il viaggio deve essere intenso nella sua accezione più ampia. Esso, infatti, inizia nel momento in cui sorge l’esigenza di spostarsi e termina quando si giunge alla destinazione finale – assieme con i beni che accompgnano il viaggiatore.
A viagem deve ser intensa na sua acepção mais ampla. Esta inicia-se no momento em que surge a exigência de deslocamento e termina quando se chega ao destino final, juntamente com os bens que o viajante transporta.
“Ora, palavras sábias!”, pensamos. Esta explicação originou todo o género de piadas para os dias seguintes. Em alturas em que os pés já latejavam com dores e em que o calor nos consumia, reflectir sobre o “conceito de viagem” servia de trunfo para fazer nascer gargalhadas de onde antes já só saiam suspiros de desespero pela temperatura desregulada ao nosso corpo. E começava sempre assim... “Ora vamos lá reflectir sobre o conceito de viagem. Quando começa? Quando acaba?”
Acabaram rápido os dois dias passados em Veneza, debaixo do sol abrasador, ao som de concertinas e vozes masculinas que cantavam músicas populares italianas, entoando ao longo dos canais, onde a beleza dos edifícios se duplicava nos reflexos da água. Como sempre acabam todas as viagens.
Ao final do segundo dia deixamos a Terra do Nunca. No avião de regresso, ela que me acompanha sempre, disse-me “Não quero voltar para Portugal...”. “Eu também não...”, respondi. Mas também não queria voltar para Roma. Eu queria ficar na Terra do Nunca, que não é Veneza, nem outra cidade qualquer, não é um país, nem um qualquer ponto geográfico. É...um estado de espírito.
Há muito que a viagem em Roma se acabou. Porque a viagem acaba-se quando os sentidos deixam de funcionar correctamente. O olfacto entope-se, os olhos já não enxergam as tonalidades entre as várias cores, os ouvidos escutam só ruídos de carros e motorizadas...e disparates. Os disparates passam a perturbar-nos terrivelmente. Os dedos, esses, enferrujam porque já não recebem estímulos.
A viagem acaba quando se sente saudades, quando nos dá vontade de dizer o quanto gostamos das pessoas que gostamos. É então que surge a “exigência de deslocar-nos”, porque os dedos suplicam por algo novo, por alimento para a alma, por algo “intenso, na sua acepção mais ampla”.
Afinal...eram mesmo sábias palavras...
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